Pousio
Ministério da Certificação e das Novas Oportunidades
"O Ministério da Educação devia passar a chamar-se Ministério da Certificação e das Novas Oportunidades.Senhora ministra:Dentro de poucos meses partirá para um exílio dourado. Obviamente que partirá, seja qual for o resultado das eleições. É tempo de lhe dizer, com frontalidade, e antes que o ruído da campanha apague o meu grito de revolta, como a considero responsável por quatro anos de Educação queimada. Este qualificativo metafórico ganhará realismo à medida que aqui for invocando os falhanços mais censuráveis, alguns apenas, dos muitos que fazem de si, politicamente, uma predadora do futuro da escola pública. Se se sentir injustiçada, tenha a coragem de marcar o contraditório, cara a cara, onde e quando quiser, perante professores, alunos, pais e demais cidadãos votantes. Por uma vez, sairia do ciclo propagandístico em que sempre se moveu.A senhora ministra falhou estrondosamente com o sistema de avaliação do desempenho dos professores, a vertente mais mediática da enormidade a que chamou estatuto de carreira. A sua intenção não foi, nunca, como lhe competia, dignificar o exercício de uma profissão estratégica para o desenvolvimento do país. A senhora anda há um ano a confundir classificação do desempenho com avaliação do desempenho e demonstrou ignorar o que de mais sério existe na produção teórica sobre a matéria. Permitiu e alimentou mentiras inomináveis sobre o problema.O saldo é claro e incontestável: da própria aberração técnica que os seus especialistas pariram nada resta. Terão os professores classificados com bom, pelo menos, exactamente o que criticava quando começou a sua cruzada, ridiculamente fundamentalista. A que preço? Coisa difícil de quantificar. Mas os cacos são visíveis e vão demorar anos a reunir: o maior êxodo de todos os tempos de profissionais altamente qualificados; a maior fraude de que há memória quando machadou com critérios de vergonha carreiras de uma vida; o retorno à filosofia de que o trabalho é obrigação de escravos. Não tem vergonha desta coroa? Não tem vergonha de vexar uma classe com a obrigação de entregar objectivos individuais no fim do ano, como se ele estivesse a começar? Acha sério mascarar de rigor a farsa que promoveu?A senhora ministra falhou quando fez aprovar um modelo de gestão de escolas, castrador e centralizador. Não repito o que então aqui escrevi. Ainda os directores estão a chegar aos postos de obediência e já os factos me dão razão. Invoco o caso do Agrupamento de Santo Onofre, onde gestores competentes e legalmente providos foram vergonhosamente substituídos; lembro-lhe a história canalha de Fafe, prenúncio caricato de onde nos levará a municipalização e a entrega da gestão aos arrivistas partidários; confronto-a com o silêncio cúmplice sobre a suspensão arbitrária de um professor em Tavira, porque o filho do autarca se magoou numa actividade escolar, sem qualquer culpa do docente. Dá-se conta que não tem qualquer autoridade moral para falar de autonomia das escolas?A senhora ministra falhou quando promoveu a escola que não ensina. Mostre ao país, a senhora que tanto ama as estatísticas, quanto tempo se leva hoje para fazer, de uma só tirada, os 7.º, 8.º e 9.º anos e, depois, os 10.º, 11.º e 12.º. E sustente, perante quem conhece, a pantomina que se desenvolveu à volta do politicamente correcto conceito de escola inclusiva, para lá manter, a qualquer preço, em ridículas formações pseudoprofissionais, os que antes sujavam as estatísticas que a senhora oportunistamente branqueou. Ouse vir discutir publicamente a demagogia de prolongar até aos 18 anos a obrigatoriedade de frequentar a escola, no contexto do país real e quando estamos ainda tão longe de cumprir o actual período compulsivo, duas décadas volvidas sobre o respectivo anúncio. Do mesmo passo, esclareça (ainda que aqui a responsabilidade seja partilhada) que diferenças existem entre o anterior exame ad hoc e o pós-moderno "mais de 23", para entrar na universidade. Compreendo, portanto, que no pastel kafkiano a que chamou estatuto de carreira não se encontre o vocábulo ensinar. Lá nisso, reconheço, foi coerente. Só lhe faltou mudar o nome à casa onde pontifica. Devia chamar-se agora, com propriedade, Ministério da Certificação e das Novas Oportunidades. Não tem remorsos?A senhora ministra falhou rotundamente quando promoveu um estatuto do aluno que não ajuda a lidar com a indisciplina generalizada; quando deu aos alunos o sinal de que podem passar sem pôr os pés nas aulas e, pasme-se, manifestou a vontade de proibir as reprovações, segundo a senhora, coisa retrógrada. A senhora ministra falhou quando defendeu uma sociedade onde os pais não têm tempo para estar com os filhos. A senhora ministra falhou quando permitiu, repetidas vezes, que crianças fossem usadas em actividades de mera propaganda política. A senhora ministra falhou quando encomendou e pagou a peso de ouro trabalhos que não foram executados, para além de serem de utilidade mais que duvidosa. Voltou a falhar quando deslocou para os tribunais o local de interlocução com os seus parceiros sociais, consciente de que o Direito nem sempre tem que ver com a Justiça. Falhou também quando baniu clássicos da nossa literatura e permitiu a redução da Filosofia. Falhou ainda quando manipulou estatisticamente os resultados escolares e exibiu os que não se verificaram. Falhou igualmente quando votou ao abandono crianças deficientes e professores nas vascas da morte. Falhou, por fim, quando se deixou implicar no logro do falso relatório da OCDE e no deslumbramento saloio do Magalhães.Por tudo isto e muito mais que aqui não cabe, a senhora é, em minha opinião, uma ministra falhada. Parte sem que eu por si nutra qualquer espécie de respeito político ou intelectual."
Big Brother da Educação
O DR de ontem traz uma resolução do Governo que autoriza o ME a gastar 30 milhões de euros, em 4 anos, na construção do Sistema de Informação da Educação. Trinta milhões de euros é muito dinheiro para a aquisição de software e respectiva gestão e manutenção. Fomos ver como é que esse dinheiro vai ser gasto. O blogue Fliscornio dá-nos uma ajuda:Serviços de suporte técnico e gestão operacional: 15 milhões de euros mais IVAServiços de desenvolvimento de sistemas de informação: 11 milhões de euros mais IVAO editor do Fliscornio fez as contas e concluiu que vão ser gastos mais de 10 mil euros por dia só na gestão operacional e manutenção do Sistema de Informação da Educação. E o que é o Sistema de Informação da Educação? Na resolução do Conselho de Ministros pode ler-se que o Sistema de Informação da Educação é uma espécie de plataforma tecnológica que congrega dois interfaces “web”: o portal de cada escola e o portal institucional do Ministério da Educação. Os dois portais “funcionam ainda como pontos de acesso a um sistema integrado de gestão para as escolas e para os diversos organismos que integram o Ministério”. Ou seja, o ME vai gastar 30 milhões de euros num sistema que visa apertar o controlo sobre as escolas e os professores, sugando ainda mais a quase nula autonomia de que dispõem as escolas. O Sistema de Informação da Educação será um gigantesco "Big Brother" de vigilância e controlo dos professores."É assim. Tudo isto "A Bem da Nação", é claro. Podem estar descansados, há-de vir o dia em que o ME até dirá com que cor é que devemos sublinhar - e nós deixamos. O controlo será total. Nesse dia, mais uma vez, será tarde para inverter o processo.
Poema do Urso - Marguerite Yourcenar
Cantilena para um tocadorde flauta cegoFlauta de noite se cerra,Presença líquida de um pranto,Todos os silêncios da terraSão as pétalas do teu canto.Espalha teu pólen na alfombraDo catre que por fim te acoiteMel de uma boca de sombraComo um beijo na boca da noiteE pois que as escalas que cansasNos dizem que o dia acabou,Faz-nos crer que os céus dançamPorque um cego cantou.
A Censura e a Nação
"A Censura e a NaçãoNão conheço pessoalmente José Rodrigues dos Santos. Tenho a certeza que é um bom profissional e uma pessoa inteligente. Alguns, perturbados com a sua maneira de ser, melhor dizendo, de transmitir a verdade, estarão inquietos. No fundo parece-me (só me parece) que o jornalista Rodrigues dos Santos esteve a ser vítima de uma tentativa de «domesticação», no sentido de respeitar «os mais altos valores da nação»! Gostava de estar enganado mas vejamos a nossa tradição. Em 1539, cinquenta anos após a impressão do primeiro livro que se saiba ter sido publicado em Portugal, o "Tratado de Confession", impresso em Chaves a 8 de Agosto de 1489, aparece o primeiro livro censurado, "O Ensino Cristão".A 2 de Novembro de 1540, o inquiridor-geral, Infante D. Henrique, confia a censura a três dominicanos e a 29 de Novembro de 1540 o inquisidor João de Melo legisla neste sentido: «Que não deviam imprimir cousa alguma sem primeiro mostrarem aos censores nomeados, sob pena de execução e de dez cruzados de multa para despesas da Inquisição.» A partir daí poucos são os momentos em que a censura deixa de existir.Curiosamente, e tal como no longo regime salazarista, a 13 de Fevereiro de 1821, no primeiro Parlamento português, o deputado Anes de Carvalho justificava a censura com a seguinte argumentação: «A Nação não está preparada, nem pela opinião nem pela instrução, para tamanha largueza de liberdade...»Em 1933, o artigo 3º da Constituição diz textualmente: «A censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida de forma a defendê-la de todos os factores que a desorientam contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade.» Em 1944 a Direcção dos Serviços de Censura de Instruções diz o seguinte: «Parece desejável que as Crianças Portuguesas sejam cultivadas não como cidadãos do Mundo, mas como Crianças Portuguesas que mais tarde já não serão Crianças, mas continuarão a ser Portuguesas.»(!)Mais recentemente, a 29 de Outubro de 1984, o então presidente de gerência da RTP determina no ponto 2 da Ordem de Serviço nº 59: ... «Após esse visionamento deverá o funcionário que a ele tiver procedido elaborar um breve relatório sobre o filme, em que informe, sob a sua responsabilidade, qual o tema de que trata e se contém imagens ou textos susceptíveis de ofenderem os telespectadores, tendo em conta os valores morais por que se rege a maioria dos Portugueses.»Curiosa coisa é o modo como a história se repete. Assim, por ironia do destino, dos que persistem em chamar à estupidez destino, nestes anos de 2007-2008 tudo parece recomeçar: Ou será que nunca parou?Apetece-me mesmo, dirigindo-me a todos os censores, dedicar-lhes este bocadinho de Gil Vicente:"Que quem tem vida gaiadaComo vós da vossa sortePor vós é cousa provadaQue quem tem vida cagadaCagada há-de ser a morte"
Pena Firme
"Às vezes...Por vezes gostava de morar numa ilha deserta, fugir dos problemas, das pessoas e ter tempo para mim mesma. Olhar para dentro de mim e ver quem sou, porquê e tentar mudar o necessário.Às vezes, apetecia-me não conhecer a humanidade, ser ignorante, não saber que há formas de roubar, ser só eu sem me desviar, para tentar ser melhor.Às vezes, apetecia-me estar isolada e não saber que estamos a caminhar para a desgraça.Às vezes, apetecia-me ser protegida pela ignorância.Às vezes..."
Governo e os seus Críticos 2
"Vocês, comunicação social, o que dão é esta conversa de «inflação menos de 1 ponto», o «crescimento 0,1»... Se as pessoas soubessem o que é 0,1% de crescimento, que é um café por português de 3 em 3 dias...Portanto andamos a discutir um café de 3 em 3 dias... mas sem açúcar"."Eu não sou candidato a nada, e por conseguinte não quero ser popular. Eu não quero é enganar os portugueses. Nem digo mal por prazer, nem quero ser «popularuxo» porque não dependo do aparelho político!""Ainda há dias eu estava num supermercado, numa bicha para pagar, e estava uma rapariga com umas garrafas, e em vez de multiplicar «6x3=18», contava com os dedos: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... Isto não é ensino...é falta de ensino, é uma treta! É o futuro que está em causa!""Os números são fatais. Dos números ninguém se livra, mesmo que não goste. Uma economia que em cada 3 anos dos últimos 27, cresceu 1% ...esta economia não resiste num país europeu.""Quem anda a viver da política para tratar da sua vida, não se pode esperar coisa nenhuma. A causa pública exige entrega e desinteresse.""Se nós já estamos ultra-endividados, faz algum sentido ir gastar este dinheiro todo em coisas que não são estritamente indispensáveis? P'rá gente ir para o Porto ou para Badajoz mais depressa 20 minutos? Acha que sim?""A aviação está a sofrer uma reconversão, vamos agora fazer um aeroporto, se calhar não era melhor aproveitar a Portela? Quer dizer, isto está tudo louco?""Eu por mim estou convencido que não se faz nada para pôr a Justiça a funcionar porque a classe política tem medo de ser apanhada na rede da Justiça. É uma desconfiança que eu tenho. E então, quanto mais complicado aquilo for..."
"Nós tivemos nos últimos 10-12 anos 4 Primeiros-Ministros:
-Um desapareceu;
-O outro arranjou um melhor emprego em Bruxelas, foi-se embora;
-O outro foi mandado embora pelo Presidente da República;
-E este coitado, anda a ver se consegue chegar ao fim""O João Cravinho tentou resolver o problema da corrupção em Portugal. Tentou. Foi "exilado" para Londres. O Carrilho também falava um bocado, foi para Paris. O Alegre depois não sei para onde ele irá... Em Portugal quem fala contra a corrupção ou é mandado para um "exílio dourado", ou então é entupido e cercado.""Então, o meu amigo encomenda aí uma ponte que é orçamentada para 100 e depois custa 400? Não há uma obra que não custe 3 ou 4 vezes mais? Não acha que isto é um saque dos dinheiros públicos? E não vejo intervenção da polícia... Há-de acreditar que há muita gente que fica com a grande parte da diferença!""De acordo com as circunstâncias previstas, nós por volta de 2020 somos o país mais pobre da União Europeia. É claro que vamos ter o nome de Lisboa na estratégia, e vamos ter, eventualmente, o nome de Lisboa no tratado. Será, mas não passa disso. É só para entreter a gente...""A educação em Portugal é um crime de «lesa-juventude»: Com a fantasia do ensino dito «inclusivo», têm lá uma data de gente que não quer estudar, que não faz nada, não fará nada, nem deixa ninguém estudar. Para que é que serve estar lá gente que não quer estudar? Claro que o pessoal que não quer estudar está lá a atrapalhar a vida dos outros. Mas é inclusiva... O que é ser inclusiva? É para formar tontos? Analfabetos?""Os exames são uma vergonha. Você acredita que num ano a média de Matemática é 10, e no outro ano é 14? Acha que o pessoal melhorou desta maneira? Por conseguinte a única coisa que posso dizer é que é mentira, é um roubo ao ensino e aos professores! Está-se a levar a juventude para um beco sem saída. Esta juventude vai ser completamente desgraçada! ""A minha opinião desde há muito tempo é TGV- Não! Para um país com este tamanho é uma tontice.O aeroporto depende. Eu acho que é de pensar duas vezes esse problema. Ainda mais agora com o problema do petróleo."Quem tem interesse que se façam estas obras é o Governo Português, são os partidos do poder, são os bancos, são os construtores, são os vendedores de maquinaria... Esses é que têm interesse, não é o povo português!""Nós em Portugal sabemos resolver o problema dos outros: A guerra do Iraque, do Afeganistão, se o Presidente havia de ter sido o Bush, mas não sabemos resolver os nossos. As nossas grandes personalidades em Portugal falam de tudo no estrangeiro: criticam, promovem, conferenciam, discutem, mas se lhes perguntar o que é que se devia fazer em Portugal nenhum sabe. Somos um país de papagaios..."A crise internacional é realmente um problema grave, para 1-2 anos. Quando passar lá fora, essa crise também passará cá.Mas quando essa crise passar cá, nós ficamos outra vez com os nossos problemas, com a nossa crise.Portanto é importante não embebedar as pessoas com a ideia de que isto é a maldita crise. Não é!""Nós estamos com um endividamento diário nos últimos 3 anos correspondente a 48 milhões de euros por dia: Por hora são 2 milhões! Portanto, quando acabarmos este programa Portugal deve mais 2 milhões! Quem é que vai pagar?""Isto da avaliação dos professores não é começar por lado nenhum. Eu já disse à Ministra uma vez «A senhora tem uma agenda errada"» Porque sem pôr disciplina na escola, não lhe interessa os professores. Quer grandes professores? Eu também, agora, para quê? Chegam lá os meninos fazem o que lhes dá na cabeça, insultam, batem, partem a carteira e não acontece coisa nenhuma. Vale a pena ter lá o grande professor? Ele não está para aturar aquilo... Portanto tem que haver uma agenda para a Educação. Eu sou contra mais autonomia das escolas. Isso é descentralizar a «bandalheira».""Há dias circulava na Internet uma notícia sobre um atleta olímpico que andou numa "nova oportunidade" uns meses, fez o 12ºano e agora vai seguir Medicina... Quer dizer, o homem andava aí distraído, disseram «meta-se nas novas oportunidades» e agora entra em Medicina...Bem, quando ele acabar o curso já eu não devo cá andar felizmente, mas quem vai apanhar esse atleta olímpico com este tipo de preparação... Quer dizer, isto é tudo uma trafulhice...""É preciso que alguém diga aos portugueses o caminho que este país está a levar. Um país que empobrece, que se torna cada vez mais desigual, em que as desigualdades não têm fundamento, a maior parte delas são desigualdades ilegítimas para não dizer mais, numa sociedade onde uns empobrecem sem justificação e outros se tornam multi-milionários sem justificação, é um caldo de cultura que pode acabar mal. Eu receio mesmo que acabe muito mal.""Quando a linha de desenvolvimento da União Europeia sobe, também sobe a linha de Portugal. Por conseguinte quando os Governos dizem que estão a fazer coisas e que a economia está a responder, é mentira! Nós na conjuntura de médio prazo e curto prazo não fazemos coisa nenhuma. Os governos não fazem nada que seja útil ou que seja excessivamente útil. É só conversa e portanto, não acreditem...""Tudo se resume a sacar dinheiro de qualquer sítio. Esta interpenetração do político com o económico, das empresas que vão buscar os políticos, dos políticos que vão buscar as empresas...Isto não é um problema de regras, é um problema das pessoas em si... Porque é que se vai buscar políticos para as empresas? É o sistema, é a (des)educação que a gente tem para a vida política...Um político é um político. E um empresário é um empresário. E não deve haver confusões entre uma coisa e outra. Cada um no seu sítio. Esta coisa de ser político, depois ministro, depois sai, vai para ali, tira-se de acolá, volta-se para ministro...é tudo uma sujeira que não dá saúde nenhuma à sociedade.""Este país não vai lá com habilidades nem com espectáculos. Este país só vai com seriedade. Enquanto tivermos ministros a verificar preços e a distribuir computadores, eles não são ministros. São propagandistas ! Eles não são pagos nem escolhidos para isso! Eles têm outras obrigações e têm que perceber quais os grandes problemas do país!""Se aparece aqui uma pessoa para falar verdade, os vossos comentadores dizem «este tipo é chato, é pessimista»....Se vem aqui outro trafulha a dizer umas aldrabices fica tudo satisfeito...Vocês têm que arranjar um programa onde as pessoas venham à vontade, sem estarem a ser pressionadas, sossegadamente dizer aquilo que pensam. E os portugueses se quiserem ouvir, ouvem. E eles vão ouvir, porque no dia em que começarem a ouvir gente séria e que não diz aldrabices, param para ouvir. O Português está farto de ser enganado!Todos os dias tem a sensação que é enganado!"
Ensinar o quê?
"O que é que a escola deve ensinar?[...]Trata-se, como bem sugere João Boavida, de um problema sem sentido, pois se a sociedade pede (ou exige?) à escola que resolva toda e qualquer dificuldade que ela própria cria e não sabe como lhe fazer face, também lhe pede (ou exige?) que as resolva sem se desligar dela, respeitando as suas escolhas, nunca entrando em ruptura com os modos de pensar e de agir estabelecidos.Por seu lado, a escola tem aceitado entusiasticamente esse desafio impossível, denotando permeabilidade às mais diferentes influências sociais, respondendo a esta, àquela e à outra imposição da família, da publicidade, do desporto, da saúde, da comunicação social... manifestando-se disponível para incluir, este, aquele e o outro assunto, sempre contextualizando na sociedade, é claro![...]E, talvez pareça estranho que se fale em esvaziamento curricular, porquanto, os currículos, afiguram-se recheados. A este propósito escreveu Fernando Savater: "todos os anos se incorporam novas disciplinas na oferta académica, que cresce e se diversifica até à exaustão, pelo menos nos planos ministeriais. É obrigatório incluir música, pintura, escultura, cinema, teatro, informática, segurança rodoviária, noções de primeiros socorros, rudimentos de economia política, expressão corporal, dança, redacção e crítica jornalística, etc. (…)."[...]Suponho que, mais cedo ou mais tarde, a sociedade - entendendo a escola como uma das suas instituições - e a escola - entendendo-se como uma das instituições da sociedade - terão de voltar a pôr a questão: O que é que a escola deve, efectivamente, ensinar? Ou, de modo mais completo: O que é que a escola deve ensinar para que a sociedade mantenha os padrões civilizacionais que conseguiu construir até ao presente?Pois, ainda nas palavras do filósofo espanhol, "é a civilização e não meramente a cultura, que a educação deve aspirar a transmitir", e se esta for a linha orientadora de entendimento da sociedade e da escola, outro rumo teremos de seguir quanto às opções curriculares."
Desenvolvimento com a Globalização?
“A globalização está a desenrolar-se de forma assimétrica. O impacto da globalização é sentido de forma diferente [nas diferentes partes do mundo], e algumas das suas consequências não são de todo benignas. Lado a lado com o acumular de problemas ecológicos, o aumento das desigualdades entre as várias sociedades é um dos maiores desafios que o mundo enfrenta nos primórdios do século XXI. (…)
A vasta maioria da riqueza mundial está concentrada nos países industrializados ou ‘desenvolvidos’, ao passo que os países do ´terceiro mundo´ sofrem de pobreza generalizada, sobrepopulação, sistemas deficientes de prestação de cuidados de saúde e educação, e pesadas dívidas externas. A disparidade entre o mundo desenvolvido e o mundo em vias de desenvolvimento tem aumentado a um ritmo contínuo durante os últimos vinte anos, sendo hoje maior que nunca.
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 1999, publicado pelas Nações Unidas, revelou que o rendimento médio do quinto da população mundial que vive nos países mais ricos é 74 vezes maior que o rendimento médio do quinto da população mundial que vive nos países mais pobres. No final da década de 90, 20% da população mundial era responsável por 86% do consumo total mundial, 82% dos mercados de exportação e 74% das linhas de telefones. (…) Os bens dos três bilionários mais ricos do mundo ultrapassam a soma dos Produtos Internos Brutos (PIB) de todos os países menos desenvolvidos e dos 600 milhões de pessoas que neles vivem.
Em grande parte do mundo em vias de desenvolvimento, os níveis de produção e crescimento económico registados durante o último século não acompanharam a taxa de crescimento da população, enquanto o nível de desenvolvimento económico nos países industrializados a ultrapassou de longe. Estas tendências contrárias conduziram a uma acentuada separação entre os países mais ricos e os mais pobres do mundo. A distância entre os países mais ricos e os países mais pobres traduzia-se em 1820 na proporção de 3 para 1, de 11 para 1 em 1913, de 35 para 1 em 1950 e de 72 para 1 em 1992. Durante o último século, o rendimento per capita no segmento mais rico da população mundial quase sextuplicou, enquanto no segmento mais pobre o aumento não chegou a triplicar.
A globalização parece exacerbar esta tendência, ao concentrar ainda mais o rendimento, a riqueza e os recursos num pequeno número de países.”
Quota do PIB mundial em 1997:
Países mais ricos (20% do total de países)
86% Países médios (60% do total de países)
13%
Países mais pobres (20% do total de países)
1%
Quota de utilizadores da Internet em 1997:
Países mais ricos (20% do total de países)
93,3%
Países médios (60% do total de países)
6,5%
Países mais pobres (20% do total de países)
0,2%
Anthony Giddens, Sociologia, 5ª edição, F. C. Gulbenkian, 2007
Governo e os seus críticos
Liberdade de Imprensa
Livres e não livresA liberdade de imprensa no mundo diminuiu pelo sétimo ano consecutivo e é ameaçada pela crise económica global.Itália e Israel saíram da categoria de países livres, devido ao controlo dos media por Berlusconi e às restrições aos jornalistas durante o conflito em Gaza.A liberdade de imprensa no mundo diminuiu pelo sétimo ano consecutivo e é ameaçada pela crise económica global, diz o relatório anual da Freedom House, divulgado em vésperas do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que é assinalado hoje.O relatório nota que a Itália e Israel desceram da categoria de "países livres" para a de "países parcialmente livres", no que é entendido pelos autores do documento como um exemplo do declínio da liberdade de imprensa em regimes democráticos.
Fotografia do Urso
Dia do Trabalhador


Poesia do Urso - "Eu Sou Português Aqui"
Eu Sou Português Aqui Eu sou português aqui em terra e fome talhado feito de barro e carvão rasgado pelo vento norte amante certo da morte no silêncio da agressão. Eu sou português aqui mas nascido deste lado do lado de cá da vida do lado do sofrimento da miséria repetida do pé descalço do vento. Nasci deste lado da cidade nesta margem no meio da tempestade durante o reino do medo. Sempre a apostar na viagem quando os frutos amargavam e o luar sabia a azedo. Eu sou português aqui no teatro mentiroso mas afinal verdadeiro na finta fácil no gozo no sorriso doloroso no gingar dum marinheiro. Nasci deste lado da ternura do coração esfarrapado eu sou filho da aventura da anedota do acaso campeão do improviso, trago as mão sujas do sangue que empapa a terra que piso. Eu sou português aqui na brilhantina em que embrulho, do alto da minha esquina a conversa e a borrasca eu sou filho do sarilho do gesto desmesurado nos cordéis do desenrasca. Nasci aqui no mês de Abril quando esqueci toda a saudade e comecei a inventar em cada gesto a liberdade. Nasci aqui ao pé do mar duma garganta magoada no cantar. Eu sou a festa inacabada quase ausente eu sou a briga a luta antiga renovada ainda urgente. Eu sou português aqui o português sem mestre mas com jeito. Eu sou português aqui e trago o mês de Abril a voar dentro do peito. Eu sou português aqui José Fanha |
A Democracia que merecemos
De vez em quando Alberto João Jardim vem à televisão e dá lições de democracia. Ninguém acredita, mas ele dá. Explica como a democracia se faz, quais as regras, o modo como se deve exercer, a forma como deve ser concebida. Jardim não tem dúvidas, sabe o que é a democracia, e há anos que consegue mostrar como na Madeira a democracia existe em todo o lado. Basta fazer o que ele diz, pensar como ele pensa, fazer as festas democráticas que ele faz, proferir os discursos que profere, fechar os jornais que ele acha que não são democráticos, afastar as pessoas que não correspondem aos seus ideais de democracia, e a democracia está assegurada.
Por vezes pasmamos com tanto descaramento, com a forma absolutamente despudorada como Alberto João Jardim nos diz que a democracia se concretiza. Mas é puro engano. Ele é que sabe. E tem um argumento de peso. Se o povo continua a dar-lhe a vitória, se os votos continuam a aparecer, se as urnas dizem sempre a mesma coisa, é porque o povo está com Alberto João Jardim, e o povo é o Alberto João e o Alberto João é a democracia. Raciocínios destes são puros como a água. As oposições deviam ser eliminadas (ou envenenadas, como na Ucrânia) porque se são apenas oposições, e não maioria, então é porque não têm o povo com elas e por isso são antidemocráticas.
Tão límpidas concepções políticas deviam ser explicadas a todos os portugueses. Por vez Alberto João tem ganas de vir por aí abaixo para pôr as coisas na ordem. Portugal está dominado por jornalistas corruptos, políticos corruptos, oposições (imaginem!), gente que não pensa como o Alberto João, e era preciso mudar o sistema, pôr esta choldra na ordem, impor pela força a verdadeira democracia.
Calculem que há dias o ex-comandante da Zona Marítima, tendo abandonado as suas funções, acabou por explicar qual a concepção democrática de Alberto João. E é elucidativo. Segundo o comandante Figueiredo Robles, ele, o ex-comandante, foi alvo de "pródigos insultos" que "só não abalaram a minha família e meus amigos porque estes conheciam os factos e, mais do que isso, estavam esclarecidos sobre a personalidade de quem as proferia". Tudo democrático, portanto. Foi tratado de "indisciplinado", "traumatizado", "desrespeitador", "colonialista" e "militar de Abril". Diz Robles Figueiredo que esta situação revelar-se-ia muito mais grave "se eu quisesse também referir os impropérios emitidos por alguns dos seus correligionários". E diz no final da carta que enviou: "Sr. dr. Jardim. Por muito que lhe custe, ficou evidente que a cultura do medo não me envolveu nos seus braços; contudo, curvo-me respeitosamente, isso sim, perante aqueles que, vivendo o quotidiano nessa região, ousam fazer da sua verticalidade um hino à coragem e à esperança."
Concluindo, a partir dos fragmentos citados nesta carta: Alberto João Jardim é um modelo de democracia. Quem quiser aprender que vá para a Madeira. As lições são gratuitas. Ouvindo e vendo a personagem na televisão, nós já desconfiávamos de que nem tudo batia certo. Tivemos agora a confirmação."
Eduardo Prado Coelho in Público de 2004
Inveja normal - Inveja patológica
José Gil escreveu "Portugal Hoje: O Medo de Existir". É professor catedrático de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e foi recentemente considerado pela revista "Nouvel Observateur" como "um dos 25 grandes pensadores de todo o mundo" e deu uma brilhante entrevista à Pública onde afirma que "em Portugal a inveja não é um sentimento, é um sistema". Acrescenta ainda que a sociedade portuguesa é paranóica e vive alimentada pelo medo: "o medo de experimentar, pelo medo do que irão dizer de nós", no que demonstra ser uma construção negativa da nossa identidade individual e social que, para funcionar num registo oposto, deveria assentar numa boa qualidade de relações afectivas e emocionais desde os tempos iniciais da vida.
De verdade, a segurança relacional, a que permite que uma pessoa olhe para si sem medo do que é, ou ainda daquilo que acha que aparenta ser, é uma construção da infância e só a adquire quem foi querido pelas suas coisas boas e contido e ajudado nas suas partes piores ou negativas. Implica uma cultura social e familiar de respeito e protecção à infância e à adolescência que ainda é raro conseguir-se, depois de muitos mil anos de desprezo, humilhação e ignorância sobre a importância dos primeiros tempos de vida.
Daí que José Gil acrescente ainda que "a nossa sociedade é infantil", no sentido de imatura, inconsistente, frágil, "mas sem o brilho das crianças", porque essas, quando conseguem manter a segurança e a alegria que lhes são particulares, têm de facto uma luz inimitável.
A inveja faz parte do desenvolvimento psíquico individual, embora os problemas possam surgir quando uma inveja normal, estruturante, ligada a uma identificação positiva do que é invejado, se transforma num afecto dominante na estrutura psíquica das pessoas, adquirindo uma dimensão verdadeiramente patológica. É claro que, essencialmente, tal só surge quando existem falhas graves e mantidas nas boas relações afectivas dos mais novos com quem deles cuida, ficando as crianças e os adolescentes (e, depois, os futuros adultos) sem capacidade de, pela ausência do modelo dos adultos, a integrarem, conterem e transformarem.
A inveja patológica demonstra o desejo de posse de algo, só existente pelo sentido de ausência, de perda, em que o bom é projectado para o que é do outro, sendo o mau posto por inteiro no próprio. A inveja pressupõe então um desejo de posse para a aniquilação ou destruição do que é invejado e, segundo interpretações da psicologia clássica, pode ser lida como uma forma de expressão da pulsão de morte, uma vez que a sua existência em larga escala não amplia, não transforma, não elabora nada da própria pessoa ou dos outros: apenas se apropria e extingue.
No momento actual da nossa sociedade, o livro e a entrevista de José Gil são de uma importância extraordinária, pois alertam de uma maneira muito perspicaz para os riscos sociais e individuais que todos vivemos. De uma maneira ou de outra, alerta para aquilo em que nos podemos tornar quando crescemos e nos formamos segundo modelos de relações pouco saudáveis, que não só não desenvolvem o melhor das nossas crianças, como as transformam em futuros adultos pouco felizes, rectos e justos. Ao não destacar o prazer de estar e se relacionar com os outros numa base segura, livre e de confiança, desenvolve muitos sentimentos paranóicos, como o mesmo autor também destaca, naquilo que ele próprio designa por uma "transferência psicótica".
Por isso, as nossas crianças e adolescentes precisam de ser olhadas de uma outra maneira. Precisam de alguém que goste delas, que de uma maneira equilibrada, continuada, previsível, lhes desenvolva padrões de ligação seguros, que as deixem confiantes em si próprias e no mundo que as rodeia. É esta a base da normal vivência psíquica, onde, quando tudo corre pelo melhor, há um mundo interior que deseja conhecer, que tem gosto em descobrir, que sonha agir na realidade o que de melhor sente ou pensa. Só pode haver pensamento depois de uma pessoa comunicar com outra e de essa comunicação ser emocionalmente gratificante, e isso molda-se desde os primeiros tempos de vida e, continua-se depois, vida fora, pelo que as crianças encontram no mundo das relações extrafamiliares, da escola, das comunidades, da sociedade. José Gil alerta para a importância "de um fora", no sentido da necessidade de uma relação com os outros e suas realidades feita de uma forma rica e plural. Em Portugal, hoje, "partimos sempre do princípio de que o que vão dizer de nós é negativo, desvalorizante. Vão-nos decerto criticar. Isso cria um medo que paralisa", acrescenta o autor. E, de verdade, se olharmos bem à nossa volta, não é isto do que mais damos às nossas crianças e adolescentes?
Assim, não é difícil dizer que há uma inveja à solta que neutraliza, como teia de uma aranha invade e prende, engolfa a sua presa, torna-a submissa, e o tempo deixa de correr, porque o espaço se torna imóvel, ou então, mata-a, fá-la desaparecer e na teia não resta nada senão um lugar vazio para quem vier a seguir. Há uma inveja à solta que não é de agora, é antiga, vem de tempos imemoriais, é infantil porque é tecida num passado erguido num bordado de relações que aniquila, apaga, ao invés de expandir a luz que cada um tem, a parte melhor que dá ou recebe dos outros. É uma erva daninha essa inveja que cresce sem que ninguém dê por ela, rasteira, miúda, mas obsessivamente agressiva, em muitos instantes mortífera, capaz de alastrar para o terreno à volta só para que nada mais possa crescer, uma espécie de bruxa que se zanga sempre que o espelho a não confirma. Inveja, coisa ruim que acontece muitas vezes sem que o sol a conheça, engendrada na noite escura dos pesadelos, inveja mercenária de quem não se suporta, de quem não ama a outro ou a nada que não ele. Inveja desejo de posse, afinal, parte que se apropria e extingue pelo simples prazer de nada ver, pela profunda tristeza de não conseguir ser.
Contra a inveja, uma só certeza - o poder amar, a vontade de crescer, o sonho de uma criança, a vida pura, partilhada, o gosto de entender que uma boa parte de nós, sem o outro, não é nada, e com ele será tudo.
Para que se possa viver sem medo de existir.
PEDRO STRECHT in Público de 2005 (destaques são meus)
Democracia Deliberativa
A democracia deliberativa afirma a necessidade de justificar as decisões tomadas pelos cidadãos e pelos seus representantes. Espera-se que ambos justifiquem as leis que querem impor uns aos outros. Numa democracia, os líderes devem dar razões que justifiquem as suas decisões e responder às razões que, por sua vez, são apresentadas pelos cidadãos. Mas a deliberação não é necessária para todos os assuntos, nem é necessária em todas as situações. A democracia deliberativa deixa lugar para outros processos de tomada de decisão — incluindo negociações entre grupos e operações secretas ordenadas pelo poder executivo —, desde que tenham eles próprios usado estas formas de justificação num momento qualquer do processo deliberativo. A sua primeira e mais importante característica é, então, o requisito de fornecer razões.
As razões que a democracia exige aos cidadãos e aos seus representantes devem remeter para os princípios que os indivíduos tentam encontrar através de um processo de cooperação justo, que não podem razoavelmente rejeitar. As razões não são meramente processuais (por exemplo, um país entrar em guerra porque "essa é a vontade da maioria") nem meramente substantivas (por exemplo, porque a "guerra promove o interesse nacional ou a paz mundial"). São razões que devem ser aceites por pessoas livres e iguais que procuram formas de cooperação justas.
A base moral do processo de fornecer razões é comum a diversas concepções de democracia. As pessoas devem ser tratadas não como meros objectos das leis ou como sujeitos passivos da governação, mas como agentes autónomos que participam directamente ou através dos seus representantes no governo da sua própria sociedade. Na democracia deliberativa, uma forma importante de participação dos agentes consiste em apresentar ou dar razões, ou em exigir que os governantes o façam, com o objectivo de justificar as leis que regulam a convivência mútua. Essas razões servem tanto para produzir uma decisão justificada como para expressar o valor do respeito mútuo. Não é suficiente que os cidadãos afirmem o seu poder através de negociações baseadas no interesse de grupos particulares ou através de eleições. Por exemplo, não faz sentido sugerir que a decisão de entrar em guerra deva ser determinada por um jogo de interesses ou que deva estar sujeita a referendo. As afirmações de poder e as expressões da vontade, embora sejam obviamente elementos centrais da política democrática, devem ser racionalmente justificadas. Quando um governo apresenta uma razão fundamental para justificar a guerra e depois se descobre que é falsa ou, o que é pior, enganadora, deve-se não apenas questionar as razões que justificaram a guerra, mas também o respeito que o governo tem pelos cidadãos.
Uma segunda característica da democracia deliberativa é que as razões dadas neste processo devem ser acessíveis a todos os cidadãos interessados. Para justificar uma imposição sobre a sua vontade, os seus concidadãos devem apresentar razões que sejam compreensíveis para eles. Se o objectivo é impor a sua vontade aos outros, então isso é o mínimo que lhes deve ser exigido. Este tipo de reciprocidade significa que as razões devem ser públicas em dois sentidos. Primeiro, significa que a própria deliberação não deve ocorrer apenas na intimidade da consciência de alguém, mas que deve ser pública. Neste sentido, a democracia deliberativa contrasta com a concepção de democracia de Rousseau, na qual os indivíduos reflectem sobre o que será correcto para a sociedade como um todo, e depois juntam-se em assembleia para votar em conformidade com a vontade geral.
O outro sentido em que as razões devem ser públicas diz respeito ao consentimento. Uma justificação deliberativa não se inicia sequer se aqueles a quem se dirige não estiverem em condições de entender o seu conteúdo essencial. Por exemplo, não é aceitável apelar apenas para a autoridade da revelação, seja de natureza divina ou secular. A maior parte dos argumentos para entrar em guerra com o Iraque apelavam às evidências e a crenças acessíveis a qualquer pessoa. Embora o Presidente Bush tivesse dito que pensava ter Deus do seu lado, não assentava o seu argumento em qualquer tipo de instrução especial originária do seu aliado divino (que podia ou não ter entrado na coligação).
Na verdade, algumas das evidências apresentadas pelos dos dois lados do debate eram técnicas (por exemplo, relatórios dos inspectores da ONU). Mas esta é uma ocorrência comum nos governos modernos. Os cidadãos têm frequentemente que confiar em peritos. Isso não significa que as razões ou a sua fundamentação sejam inacessíveis. Os cidadãos têm razões para confiar nos peritos se estes descreverem a base das suas conclusões de uma forma tal que os cidadãos as possam entender, e se estes tiverem outras razões independentes para acreditar que os peritos são confiáveis (como, por exemplo, outras avaliações correctas que os peritos tenham feito no passado, ou uma estrutura de tomada de decisão que contém verificações realizadas por peritos que tenham razões para exercer o escrutínio crítico sobre quaisquer outros).
Em rigor, a administração Bush fundamentou amplamente a sua decisão de entrar em guerra em informações fornecidas pelos serviços secretos. Na altura, os cidadãos não estavam em condições de aferir do valor dessas informações, nem de aferir da sua importância para a justificação da administração. Em princípio, usar este tipo de informação não viola necessariamente a condição da acessibilidade se forem apresentadas boas razões para manter a confidencialidade e se posteriormente forem criadas oportunidades para reavaliar a sua evidência, o que acabou por acontecer neste caso, pois as razões foram efectivamente questionadas e depois verificou-se que eram bastante duvidosas. A democracia deliberativa teria sido melhor servida se as razões pudessem ter sido avaliadas antes da tomada de decisão.
A terceira característica da democracia deliberativa refere-se ao facto de ser um processo que visa produzir uma decisão que seja vinculativa por um certo período de tempo. Deste modo, o processo deliberativo não é como um talkshow ou como um seminário académico. Os participantes não discutem só por discutir; nem sequer por amor à verdade (embora a solidez dos seus argumentos seja uma virtude deliberativa, já que é uma condição necessária da justificação da decisão). Envolvem-se numa discussão para influenciar a decisão que o governo tomará ou o processo que afectará o modo como as suas decisões serão tomadas no futuro. A determinada altura, o processo deliberativo cessa temporariamente e os líderes decidem. O presidente manda as tropas para a guerra, a legislatura aprova a lei e os cidadãos votam para eleger os seus representantes. O processo de deliberação acerca da decisão de entrar em guerra com o Iraque durou algum tempo, mais do que é habitual nestas circunstâncias. Algumas pessoas achavam que devia continuar por mais algum tempo (por exemplo, para permitir que os inspectores da ONU pudessem terminar os seus trabalhos). Só que num dado momento o presidente teria de decidir se entrava ou não em guerra e uma vez tomada essa decisão, cessaria o processo deliberativo.
Ao mesmo tempo, um processo de deliberação similar mas sobre uma questão significativamente diferente continuou: seria a decisão inicial justificável? Aqueles que a questionaram, não o faziam por acreditar que podiam voltar atrás, mas para lançar dúvidas sobre a competência ou a avaliação da administração de Bush. Também procuravam influenciar decisões futuras — pressionando a ONU e outras nações para se envolverem no esforço de reconstrução do Iraque ou apenas tentando reduzir as possibilidades de reeleição de Bush.
O facto de a discussão continuar ilustra a quarta característica da democracia deliberativa — trata-se de um processodinâmico. Embora a deliberação vise uma decisão justificável, não pressupõe que seja efectivamente justificável, no sentido em que uma justificação actual tenha um alcance futuro indefinido. Mantém-se aberta a possibilidade de um diálogo contínuo, através do qual os cidadãos podem criticar decisões anteriores e seguir em frente em razão dessas críticas. Embora uma decisão possa valer durante algum tempo, é sempre provisória no sentido em que pode sempre ser reavaliada. Esta é uma característica da democracia deliberativa que é ignorada até pela maioria dos seus defensores. […]
Os democratas deliberativos preocupam-se tanto com o que acontece depois de uma decisão como com o que acontece antes. Manter o processo de tomada de decisão em aberto — reconhecendo o seu carácter provisório — é importante por duas razões. Primeiro, na política como na vida prática, os processos de tomada de decisão e os processos de compreensão de que dependem são imperfeitos. Não podemos afirmar que as decisões que tomamos hoje se revelem correctas amanhã, e mesmo aquelas decisões que no presente pareçam bastante consistentes, podem parecer menos justificáveis à luz de novas evidências. Mesmo no caso daquelas decisões que são irreversíveis, como a decisão de atacar o Iraque, novas reavaliações podem conduzir a escolhas diversas das que foram tomadas inicialmente. Segundo, a maior parte das decisões na política não são consensuais. Aqueles cidadãos e os seus respectivos representantes que discordam da decisão inicial poderão vir a aceitá-la se considerarem que no futuro terão a oportunidade de alterar.
Uma implicação importante da natureza dinâmica da democracia deliberativa é que exige que a discussão constante respeite aquilo que designamos por princípio da economia do desacordo moral. Ao fornecer razões para as suas decisões, os cidadãos e os seus representantes devem procuram encontrar justificações que minimizem as suas diferenças relativamente aos seus opositores. Os democratas deliberativos não esperam que seja sempre possível chegar a acordo. O modo como os cidadãos lidam com o desacordo, que é endémico à vida política, deve ser uma questão central de qualquer democracia. Praticar a economia do desacordo moral promove o valor do respeito mútuo (que é o núcleo da democracia deliberativa). Ao economizar nos seus desacordos, os cidadãos e os seus representantes podem continuar a trabalhar em conjunto para aproximar posições, se não em relação às políticas que estão na origem do desacordo, pelo menos em relação às políticas em que há elevadas probabilidades de consenso. A cooperação para a reconstrução do Iraque não requer que as partes concordem com a decisão inicial de entrar em guerra. Questionar o patriotismo daqueles que criticam a guerra com o Iraque, ou opor-se aos custos de manutenção das tropas, não promove a economia do desacordo moral.
Combinando estas quatro características, podemos definir a democracia deliberativa como uma forma de governo através da qual cidadãos livres e iguais (e respectivos representantes) justificam decisões através de um processo em que trocam razões que sejam mutuamente aceitáveis e geralmente acessíveis, com o objectivo de chegar a conclusões que sejam vinculativas no presente para todos os cidadãos, mas que estejam abertas a reavaliação futura. Esta definição deixa obviamente em aberto algumas questões. Podemos melhorá-la e defender os seus pressupostos avaliando em que medida a democracia deliberativa é democrática; para que serve; por que é melhor que as alternativas disponíveis; que tipos de democracia deliberativa são justificáveis; e como podemos responder aos críticos.