Absolutamente, O Poder


Em Portugal quem tem poder nunca o larga de boa vontade, só sai empurrado. Aconteça o que acontecer a afirmação "estou de consciência tranquila", é debitada por todos, como se ouvíssemos uma cassete. Terão estas pessoas consciência? Na Suécia, um ministro por ter fugido ao pagamento da Segurança Social da sua empregada doméstica, sentiu-se na obrigação de se demitir. Não houve um clamor a pedir a sua demissão. Pura e simplesmente sentiu que não poderia continuar a ocupar o cargo de ministro e ... demitiu-se. Nós por cá que tanto gostamos de copiar (nem copiar sabemos) os países nórdicos, ficamo-nos normalmente pelos adereços, nunca copiamos o fundamental. 

Temos um governo respaldado numa maioria absoluta na Assembleia da República, logo, interpretação rápida: "Quero, posso e mando". Manda controlar a informação, pretende influenciar a justiça, legisla sobre reformas estruturantes sem tentar uma aproximação ou um acordo com a oposição.

Então, maioria absoluta é qualquer coisa como ditadura da maioria, com quase todos os vícios das ditaduras. Se mais não faz é porque não pode, não porque entenda que em democracia haverá outros caminhos a trilhar. Estamos numa fase que, ou dobramos a coluna ou arriscamo-nos a ser acusados de fazemos parte de um qualquer complô de "bota abaixo". Ao que chegámos!

Verificamos, cada vez mais, que a Democracia é uma flor muito frágil. Nada está eternamente garantido.

Mário Bettencourt Resendes escreve no Diário de Notícias de 14 de Fevereiro uma crónica sobre a liberdade de imprensa e como esta, mesmo em democracia, também é uma flor frágil.

"Na célebre frase de Lorde Acton sobre poder e corrupção, inserida numa carta dirigida, em 1887, ao bispo Mandell Creighon ("O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente"), sempre me impressionou menos a possibilidade de cedência a tentações materiais em troca de favores ilegítimos do que aquilo a que chamaria "corrupção do espírito".

Não se trata de aceitar ou sequer de tolerar o fascínio pelo "dinheiro fácil" por parte de quem possui, a um qualquer nível, capacidade de tomar ou influenciar uma decisão susceptível de gerar lucros ou outro tipo de benefícios. Afinal, como alguém já escreveu, "enquanto houver homens haverá vícios", e este tipo de corrupção é milenar e universal.

O que aqui classifiquei como "corrupção do espírito" é uma espécie de deslumbramento degenerativo que se apodera, ao cabo de alguns anos, de muitos que exercem o poder, em particular o poder político. As consequências desse torpor originam comportamentos contraditórios com a matriz ideológica e com o conjunto de valores e princípios que afirmaram, em tempos, defender. Acontecem, então, desvios autoritários, pressões à margem da lógica conflitual admissível numa sociedade aberta e democrática. A análise deste fenómeno é bem mais estimulante. 

A quebra do contacto com a realidade gera uma sobrevalorização da importância da função. É conhecido o episódio do confronto verbal do magnata brasileiro dos media Roberto Marinho (por sinal, um mau exemplo de espírito aberto e tolerante) com um governante. Perante a ira de Marinho, proclamou o ministro: "Sabe com quem está a falar? Olhe que eu sou ministro!", ao que respondeu o empresário: "O senhor não é ministro; está ministro e um dia deixará de o ser; eu, sim, sou, e serei, Roberto Marinho."

Aqueles que se deixam contaminar sofrem traumatismos violentos quando, em função da perda do poder, são confrontados com o regresso ao quotidiano do cidadão comum. Sei de vários casos de ex-ministros que tiveram enormes dificuldades de adaptação ao "real". Quando cessam abruptamente os tratamentos reverenciais (muitas vezes hipócritas), as mordomias, a prioridade em locais variados, há quem não suporte o retorno ao "antes de", até porque a crueldade de muitos próximos é frequentemente implacável. 

O Partido Socialista tem no seu ADN uma combinação de liberdade e justiça social, inspirada nas raízes da social-democracia europeia. São valores de apelo fácil, para uma sociedade como a portuguesa, que, em 1974, saía de quase cinco décadas de ditadura, caracterizada pela supressão das liberdades cívicas e por uma gritante desigualdade na distribuição da riqueza.

Conduzido por um homem com um sentido estratégico superior, Mário Soares, não surpreende, portanto, que o PS tenha ganho a preferência do eleitorado e se conserve na primeira linha das opções de voto.

Para se ser rigoroso, deve, no entanto, dizer-se que o PS nem sempre lidou sem desconforto com a liberdade de imprensa. Também na oposição, mas sobretudo no Governo, o currículo dos socialistas surge pontuado por episódios que evidenciam, no mínimo, falta de disposição para colocar a liberdade de expressão como um valor essencial das democracias liberais. Parecem ter esquecido Voltaire ("Bater-me-ei, até à morte, para que os meus adversários tenham liberdade para defender as suas ideias") ou, para citar uma leitura de maior densidade, o Tratado Político de Espinosa - e a este propósito recomenda-se uma edição recente do Círculo de Leitores/Temas e Debates, valorizada por um notável prefácio de Diogo Pires Aurélio.

Toda esta dissertação enquadra uma declaração pública recente do director do semanário Sol, um homem sério e um jornalista credível. Saraiva revelou que tinha recebido um telefonema de "alguém muito próximo do primeiro-ministro, embora não membro do Governo", a sugerir que os problemas económicos da empresa seriam rapidamente resolvidos se o jornal recuasse na divulgação de factos relacionados com o chamado caso Freeport. A gravidade da proposta, em termos de ameaça à liberdade de imprensa, é tão evidente que dispensa considerações suplementares, e só é pena que Saraiva não tenha sido mais explícito, como também não se percebe que a matéria pareça ter caído no esquecimento.

Há outros sinais dispersos, embora de gravidade menor, de "corrupção dos espíritos". Chegam, no entanto, para concluir que alguma coisa não vai bem neste "reino da Dinamarca". Chegou a altura de quem pode - e não quer ser atingido por outros que, porventura, utilizam abusivamente o nome de "quem manda" - dar um murro na mesa. E de quem tem a voz forte, falar alto. E de quem tem caneta com talento e papel de larga circulação, escrever. 

A liberdade de expressão é uma flor frágil, que exige rega cuidadosa e regular."

Mário Bettencourt Resendes

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