Siameses?


Alguém se lembra como governou Cavaco Silva? Como era a sua relação com a Assembleia da República? E a sua relação com o seu próprio partido? Se fizermos este exercício de memória, talvez percebamos porque é que Cavaco sente alguma dificuldade em trabalhar com José Sócrates, eles são siameses nos seus tiques e preconceitos. Cavaco Silva, pela sua própria formação, sente-se pouco confortável no seu lugar em Belém, falta-lhe, o que sempre lhe faltou, flexibilidade.

Eu de "siameses" só gosto dos gatos.

O tempo passa e as pessoas mudam pouco, como prova um texto de Eunice Lourenço no Público de há cinco anos.

O Espírito

Que os partidos políticos padecem de muitos males, é um facto. Mas é também um lugar-comum. E um dos maiores males de que padecem é precisamente a repetição desse lugar comum, sobretudo quando é feita por quem se serviu deles e, depois, faz o discurso anti-partidos e se coloca acima deles.

Em entrevista à TSF, esta semana, ainda a propósito do lançamento da sua autobiografia política, Aníbal Cavaco Silva lembra que teve "alguma dificuldade" a habituar-se a algumas realidades na vida política partidária, confessa "um certo enfado e um certo enjoo por algumas lutas excessivas pela conquista de lugares" na junta de freguesia, na concelhia, etc. Tinha começado por afirmar: "Prefiro hoje ser apresentado não como político." E termina a dizer que se considera "um espírito muito acima da vida partidária".

Toda a entrevista é como que um exercício de demonstração de que o ex-primeiro-ministro, afinal, não é um político. Será como que um predestinado - "foi uma razão de destino, de mero acaso que eu caí na política", diz a dada altura -, que gostava era do "contacto com o cidadão mais simples, militante partidário, mas que não estava à espera de nenhuma recompensa", pois "era aí que encontrava algum conforto, não tanto entre os barões partidários". Cavaco continua a alimentar o mito do iluminado que chegou à Figueira da Foz e foi eleito líder do partido, como se isso fosse possível assim só.

O ex-primeiro-ministro vai ainda mais longe nas suas manifestações de desprezo pela política. Diz que, enquanto esteve no governo e na liderança do PSD, se orgulha de ter possibilitado "uma entrada por cima para algumas pessoas que não estavam dispostas à luta pela concelhia, pela secção", pessoas que "não precisavam da vida política". Ou seja, pessoas que não estavam dispostas a andar pelo país, em debates em caves às vezes esconsas, a ouvir queixas sobre os buracos na rua x, ou a falta de esgotos no lugar y, que não estavam dispostas ao jogo, muitas vezes cheio de esquemas, mas ainda assim democrático, de convencer os militantes e ser eleito para a secção, a concelhia ou a distrital.

Para além do desdém que manifesta pela coisa política em oposição à dedicação que diz ter pela causa pública, Cavaco Silva também dá sinais de como seria (será) o seu exercício do cargo presidencial.

Questionado sobre qual o principal mérito que vê em si para desempenhar o cargo de Presidente da República, recorda que tem "uma experiência grande em matéria governativa e no campo internacional". E acrescenta: "A forma de lidar com problemas de natureza económica, que hoje têm um grande peso, talvez seja também uma vantagem que eu tenho, não só pelo exercício do cargo, mas também pelos meus conhecimentos." O ex-primeiro-ministro sabe, certamente, que um Presidente não tem poderes em matéria económica.

Mas é preciso que o país e o PSD vão fazendo alguns exercícios e memória. Que se lembrem, entre outras coisas, que este mesmo homem que, agora, alimenta as esperanças de muitos sociais-democratas sobre uma candidatura presidencial, sobre a qual só se pronunciará daqui a um ano, é o mesmo que deixou o partido em suspenso sobre a sua recandidatura à liderança e que, quando finalmente anunciou a sua decisão, fez questão que o seu sucessor ficasse sujeito à sua - dele, Cavaco - moção de estratégia. É preciso que se lembrem do desprezo que sempre mostrou pelo Parlamento. É preciso que se lembrem da arrogância de quem ainda hoje diz que sempre teve "um discurso um pouco diferente dos outros políticos".

É preciso que se lembrem que espírito e fantasma são, muitas vezes, sinónimos.

Eunice Lourenço in Público de 10 de Abril de 2004

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