Afectos, Solidão, Utopia, Religiosidade


António Alçada Baptista nasceu em 1927 na Covilhã e faleceu em 2008. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Alçada Baptista tem uma vasta obra literária publicada. Esteve também ligado ao jornalismo e à edição. Foi ainda cronista.

Identificado por muitos como “o escritor dos afectos” e um defensor da liberdade, Alçada Baptista foi um dos fundadores da revista “O Tempo e o Modo”, que marcou gerações.

É deste homem que vos trago, hoje, uma entrevista que ele deu em 2003 e que eu recortei, já não sei onde.

A memória é o olhar mais complexo sobre nós próprios? 

Quem perde a memória sai do mundo. Se perder a memória, perco a minha história. Não temo a morte; só tenho medo de já não ser eu quando morrer.

Novo livro de crónicas, Um Olhar à Nossa Volta. Que vê ao seu redor? 

As pessoas já nem sabem o que são valores essenciais como a liberdade, os afectos e a tolerância. São valores que devemos tomar e guardar na memória para os usar e transmitir. Existe uma sociedade em que as pessoas têm liberdade mas não há referências. Não me interessa a liberdade para ir fazer compras aos hipermercados. Interessa-me a liberdade para viver com valor a minha vida, para me enfrentar comigo próprio. 

Que tem falhado na formação de novas gerações? 

Quando estava na escola primária, muitos dos meus colegas andavam descalços. Os filhos deles já se formaram e é essa classe emergente que hoje determina a cor das massas. Deixou, em certa medida, de haver ricos e pobres e passamos a ter unicamente compradores e excluídos.

Pretende o «elogio da pobreza» tal como Erasmo fez o Elogio da Loucura? 

Não. Considero muito bom o acesso a todos os bens burgueses. Temos direito a colher os benefícios de uma civilização, todavia precisamos de arranjar maneiras sérias de os alcançar. Deve haver alguma parcimónia. Estar numa civilização não é ter cinco automóveis e meia dúzia de máquinas de lavar. Felizmente ainda há quem viva em solidariedade com os outros.

Os excluídos tendem a ser mais? 

Mas estamos em condições de ter uma mudança de civilização.

Qual a grande meta do século XXI? 

O bom uso da liberdade. Saber usar a liberdade é, para mim, capital. A liberdade não é um valor que esteja muito metido nas ideias das pessoas, no entanto ainda há quem tenha um grande sentido da liberdade; por exemplo, o que acho de mais importante em Mário Soares, dê as voltas que der, é o facto de estar sempre do lado da liberdade.

Para Jorge de Sena, «os portugueses não se salvam porque não se querem salvar». Um povo sado-masoquista? 

Estamos habituados a que o poder resolva tudo. Num certo sentido, é preciso uma dose de individualismo para se funcionar de cabeça erguida. O que nos salva? É a nossa vida pessoal e a maneira como tratamos os outros. 

Reza mais o Credo ou a Confissão? 

A minha referência é Jesus Cristo na medida em que é homem, Cristo, aos meus olhos, é homem. Se fizer a imitação do que foi a vida de Cristo, estou a valorizar-me. 

Mas a Igreja, como vê a sua doutrina perante o relacionamento amoroso dos jovens?

A Igreja faz confundir sexualidade com pecado.

Como sobreviver colectivamente? 

São necessárias regras. Mas uma das coisas que mais me encantaram na vida foram aqueles que disseram não à sociedade. Recordo a experiência de Lanza del Vasto, que viveu 12 anos ao lado de Gandhi e veio depois para o Ocidente. No Sul de França, organizou uma comunidade onde as pessoas comiam do que plantavam e vestiam do que teciam. Essas apostas maravilham-me.

A grande utopia? 

Só sairemos disto através da utopia. 

Que lugar para a utopia num mundo dominado pelas leis da economia? 

Vive-se numa sociedade cujo grande valor é o dinheiro, mas já foi pior. A juventude está hoje mais despegada das coisas materiais do que no meu tempo. E o próprio dinheiro cria vazios que as pessoas têm necessidade de preencher com a interioridade. Tenho esperança no reino do ser.

Há muitas solidões mascaradas? 

Não se imagina a solidão em que as pessoas vivem! A pouco e pouco, porém, vamos sentindo a falta do pensamento e da alma e precisamos de nos encontrar com a espiritualidade e uma certa forma de amar. As pessoas não sabem amar e a Igreja tem responsabilidades nisso porque faz confundir o amor com a sexualidade e a sexualidade com o pecado. A Igreja acabou por fazer a propaganda da sexualidade sórdida.

O fruto proibido assume um carácter fundamentalista? 

Ao criar o interdito, a Igreja deu azo ao voyeurismo. A pedofilia, por exemplo, entre o clero e de que também agora se vai falando, tem, de certo modo, a ver com essa questão. A sexualidade é uma coisa normal, uma chamada da natureza, portanto a Igreja encontrou aí o campo em que o homem mais poderia prevaricar e pedir perdão; é um fenómeno das sociedades frágeis.

É um erro de que a Igreja tem de penitenciar-se? 

Basta reconhecê-lo e emendá-lo.

Que relação tem hoje com a Igreja Católica? 

Não me esqueço do muito que devo à Igreja. Das pessoas mais extraordinárias que conheci estavam ligadas à Igreja; se todos fossem como o padre Abel Varzim ou o padre Manuel Antunes, bem iria o mundo. 

Pecado é o quê? 

Diz-se que a mulher é o pecado, mas não. O pecado é o homem. Não consigo falar à vontade com um homem da minha geração porque, ou tenho de falar de futebol e não percebo nada de futebol, ou falar de acções da bolsa de que também não sei nada. Para diálogos que me interessem, que sejam conversas de alma, procuro mulheres e gerações mais novas. A Helena Vaz da Silva faz-me muita falta. 

Qual a maior fragilidade do homem? 

A minha são os medos. Tinha medo de Deus e dos outros. Era um menino cheio de medos.

Libertou-se de todos os seus medos? 

Libertei-me na medida em que os outros aceitaram o meu diálogo, nomeadamente na escrita, isso fez-me muito bem. Não gosto de mitificar-me, nem a mim nem à minha escrita, penso todavia que na minha história pessoal nada tenho de que envergonhar-me. E como futuro terei o esquecimento. Borges também falou dessa única certeza: o esquecimento.

Admite ter na sua escrita uma sensibilidade feminina? 

Tenho, tenho. Entendo, porém, o feminino e o masculino não por meio da biologia mas pelos sentimentos. Considero mais importante a feminilização do homem do que a masculinização da mulher no sentido em que o feminino está mais ligado aos afectos e o masculino é mais poder.

Os seus livros são hinos de afectos... 

Sou talvez dos poucos escritores que não têm vergonha dos afectos. Relaciona-se com a educação que recebemos da família e da sociedade. Dizem-nos que heróis são o Napoleão, o Afonso de Albuquerque, e não se repara que existem outros heróis como Gandhi ou São Francisco de Assis, que se impuseram pelo amor e pela não violência. 

Encontrou entretanto respostas para alguma das suas grandes interrogações, para os mistérios? 

Já não é mau quando reconhecemos que o mistério existe. Um dia, em Paris, a conversar com Jean-Marie Domenach, analisávamos este pensamento de Adorno: «É preciso ter consciência sobre que espécie de ignorância está assente o nosso saber.» Atrevo-me a contrapor, hoje como sempre: temos de tomar consciência sobre que espécie de saber está assente a nossa ignorância.

António Alçada Baptista

Sem comentários:

Enviar um comentário

BlogBlogs.Com.Br