Françoise Dolto - Recordar


Após o meus "posts" de 28 e 29 de Março, sobre a Adolescência, não resisti em colocar aqui, na minha secção de recortes, uma crónica do Daniel Sampaio, no Público de Junho de 2008, sobre Françoise Dolto.

"Faz sentido destacar o centenário do nascimento de Françoise Dolto? Vinte anos após a sua morte, será que nos deixou uma herança significativa? Hoje, Dia da Criança, será bom lembrá-la?" 
"Não é fácil responder a estas questões, porque a vida e a obra desta psicanalista francesa continuam controversas: entre aqueles que sempre a idolatraram e os que a criticaram com dureza precisamos encontrar um equilíbrio que faça justiça ao seu legado, para mim inquestionável." 
"Dolto nasceu em França em 1908 e desde criança ambicionou ser "médica de educação", segundo a sua curiosa expressão. É possível que esse interesse pela "causa das crianças" (um dos seus livros mais célebres) tivesse tido origem na sua infância, perturbada pela morte da sua irmã Jacqueline, de 18 anos, quando Françoise tinha apenas onze. Este acontecimento provocou uma grave depressão na mãe e é apontado como motivação para o desejo precoce de Françoise em "cuidar" das crianças, a partir da paixão pelo curso de Medicina e do gosto pela Pediatria que sempre a caracterizaram."
"Motivações inconscientes à parte, Dolto foi uma autora proeminente na segunda metade do séc. XX. Foi graças aos seus estudos que a criança foi considerada como portadora de uma voz própria e detentora de um saber único. Escreveu "as crianças são meus colegas, ensinaram-me tudo", corolário lógico do seu trabalho permanente de escuta activa junto dos mais novos. Falava com eles de igual para igual e, mesmo quando se ocupava de bebés, partia da comunicação não verbal para a história de vida, iniciada no desejo dos pais e concretizada no momento do nascimento. Muito antes da ecografia, intuiu que o feto poderia chuchar no dedo e postulou toda uma comunicação in utero entre a mãe e o futuro ser, numa abordagem inovadora para a época. Partindo da sua própria análise e do seu contacto com Jacques Lacan, ultrapassou as concepções freudianas clássicas e deu relevo à figura paterna, num momento em que a psicanálise parecia centrada na importância da relação com a mãe. Foram também relevantes as suas pesquisas sobre as situações de amnésia infantil, após vivências traumáticas, recordadas por Dolto na psicanálise infantil. Na última fase da sua actividade, criou uma rede de "Casas Verdes", destinadas ao acolhimento de crianças até aos três anos, num trabalho que englobava os pais e que se destinava a preparar a transição para o sistema escolar. Contemporânea de Simone de Beauvoir, não passou ao lado da questão do feminismo, com o cuidado de acentuar sempre o seu grande objectivo de vida, os direitos das crianças a serem escutadas e entendidas."
"Recordo a influência que em mim teve o seu livro "La cause des adolescents", que uma amiga me ofereceu nos anos 80, num momento em que iniciava os meus estudos sobre a adolescência e ensaiava as intervenções junto dos pais de jovens em risco, uma das linhas fundamentais da minha actividade de terapeuta. Li-o depressa, com a curiosidade de quem quer ver como um mestre lida com as nossas dificuldades, mas lembro-o sobretudo pela clareza e desassombro: foi a partir dessas páginas que me convenci de vez que ninguém pode falar sobre os adolescentes sem os ouvir e tentar entender a sua "causa"." 
"Como qualquer pessoa interveniente e inovadora, foi alvo de muitas críticas. A principal resume-se à possível influência na permissividade parental do final do século passado, geradora de crianças omnipotentes e adolescentes agressivos, uma preocupação hoje muito em voga. A verdade é outra: Dolto nunca disse que as crianças poderiam fazer o que lhes apetecesse, nem que os limites parentais seriam desnecessários. Temos de compreender que a sua obra emergiu num contexto onde as crianças eram consideradas adultos em miniatura e os bebés uma espécie de tubo digestivo a quem era preciso alimentar. Françoise Dolto demonstrou que os mais novos são pessoas, com direitos individuais e pensamento próprio, que devemos escutar sem ideias precon-cebidas nem juízos fáceis."
 "Num momento em que os avanços das neurociências permitem um melhor conhecimento do cérebro e em que são mais divulgados os problemas de maus tratos infantis, a palavra de Françoise Dolto conserva toda a actualidade: respeitar e compreender as crianças é um dever que não pode ser esquecido."
           Crónica de Daniel Sampaio no Público de 1 de Junho de 2008. (destaques são meus)

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